Daria para dizer que, em matéria de evangélicos, o PT não era um aluno muito aplicado. A Fundação Perseu Abramo, braço de estudos do partido, resolveu então dar uma aula sobre o grupo religioso que, segundo o Censo 2022, representa 27% da população —eram 6,6% em 1980, ano de fundação da sigla.

O curso “Fé e Democracia para a Militância Evangélica Brasileira” começou na semana passada com 775 inscritos e uma fala que sintetiza o espírito da coisa toda: “A Bíblia é o livro da classe trabalhadora”.

Quem a disse foi a teóloga Angelica Tostes, uma das convidadas para o primeiro de oito encontros virtuais previstos. “Quantos de nós, indo para os nossos trabalhos, pegando o metrô, pegando o ônibus, a gente vê irmãos e irmãs de fé com a Bíblia, seja no celular, seja ela [na versão] física”.

Não dá para virar a cara para um campo que é sobretudo “preto, pobre, feito com mulheres da periferia”, argumenta Tostes, que é pentecostal. Aquele clichê sobre construir pontes é verdadeiro, e essa engenharia não acontece da noite para o dia.

“A gente precisa pensar que o diálogo não é um miojo. ‘Três minutos, dialoguei com os evangélicos’. Não.”

Diálogo “também não é uma ambulância”, que você só aciona “para socorrer em momentos de desespero”, ela continua. “Diálogo é construção.”

Filha de ex-católicos convertidos ao evangelicalismo, Tostes consegue entender por que essa religião inchou tanto sua base no Brasil.

“A gente vê que [as igrejas evangélicas] são espaços que vão acolhendo essas pessoas e vão dando não só respostas de uma dimensão concreta, mas também existencial. E aí é necessário que nossos companheiros e companheiras que não têm a vivência religiosa também observem isso. A religião, não só evangélica ou cristã, ela dá um sentido na vida.”

Um teste que os oponentes, afirma, gabaritaram. “Esse sentido foi, de alguma maneira, capturado pela extrema direita e pela direita, porque com esse enfraquecimento dos sindicatos, das CEBs, da própria Teologia da Libertação, que de alguma maneira também se intelectualizou demasiadamente, um espaço ficou vazio. Só que na política não existem espaços vazios.”

CEBs são as Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Igreja Católica e que o sociólogo Celso Rocha de Barros, colunista da Folha, define como “a principal forma organizacional do catolicismo de esquerda” em seu livro “PT, Uma História”. Já a Teologia da Libertação é uma corrente que surge nos anos 1960 na América Latina e interpreta a fé cristã a partir da luta contra a injustiça social.

O presidente da fundação que organizou o programa, Paulo Okamotto, falou à turma em “certa urgência” para “fazer essa reflexão”. No período eleitoral de 2024, o PT lançou uma cartilha para orientar candidatos e militantes no trato com evangélicos.

Uma bola levantada pelo material: não dá para colocar todo e qualquer crente “sob a alcunha de fundamentalista”, o que “demonstraria preconceito e poderia ser interpretado como perseguição religiosa, entregando-as para o fundamentalismo”.

Okamotto afirma na reunião virtual: “Nós temos trabalhado há mais de um ano, num grupo aqui na Perseu Abramo, para fazer com que tenhamos cada vez mais essa capacidade de dar consciência para os nossos militantes, dirigentes, filiados, sobre a importância da religião na vida do povo brasileiro”.

Um vídeo institucional exibido para o grupo —e que a fundação prefere ainda não tornar público— ensaiou uma linguagem afinada com um valor caro ao cristianismo de modo geral.

Diz o conteúdo: “Toda família deste país merece ter moradia digna, alimentação, trabalho e renda. A família é onde encontramos a fraternidade e a solidariedade em momentos de dificuldade. O cristão verdadeiro, ele é o primeiro a defender a família”.

A questão é entender de que molde familiar se está falando. Esse termo, segundo Tostes, “está sendo cooptado de uma maneira instrumental, como se nós, da esquerda, não defendêssemos a família”, afirma. “Mas a gente defende as famílias, as diversas formas de ser família.”

Discursos assim, que mostram respeito a modelos que fogem à “tradicional família brasileira”, com pai, mãe e filhos, abrangem muitas coisas. Desde lares com mãe solo a casais homoafetivos que adotam crianças.

O pastor Ariovaldo Ramos, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e referência progressista no meio, buscou aproximar o programa petista da matriz cristã.

“Os princípios do reino”, diz, demandam “um governo que trabalha em prol do futuro do trabalhador”. Está na Bíblia. “A gente vê, por exemplo, lá em Atos [livro do Novo Testamento], que a igreja criou uma seguridade social para a viúva. E, como disse o apóstolo Paulo, quem colheu demais não tem sobrando, para que quem colheu de menos não sinta falta. A lógica cristã é uma justiça que trabalha a partir da igualdade.”

Ele também diz que as Escrituras defendem a reforma agrária. Aparece no Antigo Testamento: o jubileu seria esse ano especial, a cada meio século, quando escravizados são libertos, dívidas, perdoadas, e há justiça social na distribuição de terras —que, por sinal, não pertenceriam a homens, e sim a Deus.

Ramos vê aqui um ponto de confluência com a “utopia marxista, que é o fim das classes e quando os meios de produção pertencem ao trabalhador”. Essa “lógica cooperativa que você encontra nas Escrituras é impressionante”, ele se entusiasma.

Decana evangélica entre os parlamentares petistas, a deputada Benedita da Silva dá um breve testemunho gravado —estava num voo no horário da aula. Que seus colegas, assim como ela, estejam “prontos a declarar para todos e para todas que nós não nos envergonhamos do Evangelho de Cristo”.

Os nomes escalados para o curso são todos parte de uma minoria progressista entre a liderança evangélica, com projeção tímida perto de pastores como Silas Malafaia e Cláudio Duarte, ou influencers como Deive Leonardo e Thiago Brunet, todos evangélicos que ladearam com Jair Bolsonaro na eleição.

Entre os convidados para palestrar está o pastor Valdinei Ferreira, que teve um entrevero com a faculdade presbiteriana onde dá aula após artigo sobre Judas que irritou conservadores.

Também fala à turma o pastor Sergio Dusilek. Pressionado por pares, ele renunciou à presidência da Convenção Batista Carioca em 2022, no meio do furdunço eleitoral, após dizer que “a igreja evangélica tem que pedir perdão ao presidente Lula“.



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