O relatório final da Polícia Federal sobre o uso político da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) na gestão Jair Bolsonaro (PL) inclui, “potencialmente”, o ex-presidente no núcleo político da organização criminosa acusada de estar por detrás da conduta ilícita atribuída ao órgão.
De acordo com a apuração, este núcleo foi o “responsável por definir as diretrizes estratégicas da Orcrim [organização criminosa], determinar os alvos das ações clandestinas (opositores, instituições, sistema eleitoral) e se beneficiar politicamente das operações. Era o centro decisório e o principal destinatário das ‘vantagens’ ilícitas (manutenção no poder, ataque a adversários)”.
O núcleo político da chamada “Abin paralela” também seria composto pelo vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente que foi indiciado no inquérito.
No último dia 12, a PF entregou o documento ao STF (Supremo Tribunal Federal) com o indiciamento de 36 pessoas. Além de Carlos, o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) e o delegado federal Luiz Fernando Corrêa, atual diretor-geral da agência, foram incluídos na lista. Relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes tirou o sigilo do relatório nesta quarta-feira (18).
O nome de Jair Bolsonaro não constou na relação de indiciados, embora o documento atribua ao ex-presidente indícios de conduta criminosa.
De acordo com o relatório, o indiciamento deixou de ser feito pelo fato de Bolsonaro já ter sido implicado em outro inquérito sob suspeita de organização criminosa, não podendo ser alvo de nova acusação formal por esse delito.
Procurados pela Folha, os advogados que atuam na defesa de Bolsonaro não responderam. Nesta terça (17), quando foi noticiado o indiciamento, Carlos insinuou perseguição em uma rede social. “Alguém tinha alguma dúvida que a PF do Lula faria isso comigo? Justificativa? Creio que os senhores já sabem: eleições em 2026? Acho que não! É só coincidência!”, disse.
A PF atribuiu ao vereador “papel de comando na estratégia de desinformação e na articulação de estruturas clandestinas” e o acusa de ter sido um dos principais responsáveis pela concepção e manutenção da estrutura conhecida como “gabinete do ódio”, que atacava supostos inimigos de Bolsonaro.
“O investigado figura no cerne das ações delituosas da organização criminosa e conforme corroborado por testemunhas foi o idealizador da ‘inteligência paralela’ formada por um delegado e três agentes, por não confiar nas estruturas oficiais”, afirmou a polícia.
O inquérito foi aberto no primeiro ano do governo Lula (PT) para apurar indícios de que a Abin tenha sido aparelhada quando estava sob o comando de Ramagem e usada de forma ilegal pelo ex-presidente.
As investigações começaram a partir de suspeitas do uso do software espião FirstMille para espionar adversários políticos, jornalistas e ministros do STF. Agora, caberá à PGR (Procuradoria-Geral da República) analisar o relatório final e decidir se denuncia os acusados.
A PF concluiu que a estrutura clandestina “utilizou assessores nomeados em cargos públicos e recursos estatais para produzir e disseminar sistematicamente narrativas falsas e ataques contra instituições (como o Sistema Eleitoral Brasileiro e o Poder Judiciário), opositores políticos e quaisquer indivíduos ou grupos que contrariassem os interesses do grupos políticos no poder”.
Disse ainda ter sido demonstrada a participação ativa e o domínio funcional de integrantes do núcleo político (o que inclui Bolsonaro e Carlos) “nas atividades criminosas investigadas, contribuindo para os objetivos da organização, incluindo a abolição do Estado democrático de Direito”.
A polícia apontou para uma tarefa de contrainteligência que seria destinada a “proteger” o núcleo familiar de investigações oficiais, em que recorriam a Ramagem, então diretor da Abin.
Os responsáveis pelas investigações dizem que basearam suas conclusões, entre outras informações, em mais de cem laudos periciais, produzidos a partir da extração de dados de mais de 200 dispositivos eletrônicos. Foram quase cem depoimentos realizados.
Em um trecho do relatório de 1.125 páginas, a PF diz que o ex-presidente, desde a chegada de Ramagem ao comando da Abin, “foi o principal beneficiado pelas ações da estrutura paralela”.
Ramagem se encarregou, de acordo com os investigadores, de materializar a referida estrutura paralela, cuja idealização é atribuída pela polícia a Carlos Bolsonaro.
Entre as evidências que a PF lista para corroborar suas conclusões em relação a Bolsonaro estão anotações do então diretor da Abin que seriam destinadas ao ex-presidente.
“As reiteradas alegações do Orcrim [organização criminosa] sobre a credibilidade do sistema eleitoral são substanciadas no ‘Presidente TSE informa.docx’ (27/07/2021) produzido por Ramagem”, afirmou trecho do documento. No dia 4 de agosto de 2021, destacou a polícia, Bolsonaro realizou live nas redes sociais com questionamentos ao sistema eleitoral.
Os investigadores afirmam que em uma outra anotação, identificada como “PR Presidente.docx”, constam orientações sobre a alteração dos indicados a um conselho ligado à Presidência da República, “com a finalidade de intervenção federal”, citação que estaria no contexto da trama golpista, objeto de ação penal que tramita no STF em que Bolsonaro figura como réu.
Um homônimo do ministro Alexandre de Moraes foi, segundo a PF, monitorado ilegalmente pelo grupo investigado por uso político da Abin na gestão Bolsonaro.
De acordo com o relatório final da apuração, o homem de nome igual ao do ministro foi pesquisado ao menos em três ocasiões por meio do software espião FirstMille. Ele seria gerente de uma loja de artigos domésticos em São Paulo.
“O registro, por exemplo, associado à pesquisa de ‘Alexandre de Moraes Soares’ não apresenta nenhuma justificativa, levando à plausibilidade de terem sido realizadas 3 (três) pesquisas do homônimo do Exmo. ministro relator no dia 18/05/2019. O homônimo alvo da pesquisa, ainda, reside no Estado de São Paulo”, diz a polícia.
O período citado coincide com o início da tramitação do inquérito das fake news, de relatoria de Moraes. A apuração foi instaurada em março de 2019, e em 14 de maio o ministro Luiz Edson Fachin liberou para julgamento do plenário um recurso para a suspensão do inquérito.
O ministro foi monitorado em outros momentos relacionados ao andamento do inquérito das fake news, como quando o plenário do STF confirmou a legalidade da ação.