O testemunho do general Marco Antônio Freire Gomes, comandante do Exército no último ano da gestão de Jair Bolsonaro (PL), reacendeu as dúvidas e ambiguidades sobre o papel do militar no episódio da trama golpista do final de 2022.
A fala nesta segunda-feira (19) diante de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do chefe da Procuradoria-Geral da República, Paulo Gonet, resultou não só numa reprimenda por parte de Alexandre de Moraes como reavivou suspeitas de omissão do então chefe do Exército diante da clara movimentação antidemocrática que fervilhava nos palácios do Planalto e da Alvorada naquele período.
Ao mesmo tempo em que a capa de herói pintada no relatório final da Polícia Federal e na denúncia da PGR fecha os olhos para atos do militar destoantes desse figurino, perduram também elementos que, de fato, mostram-no como um grande obstáculo ao golpe.
O suposto abrandamento de sua versão irritou Moraes, o que novamente explicita a aparente indiferença do ministro em ser juiz e promotor de acusação ao mesmo tempo, com direito a broncas “no seu tribunal“.
A palavra suposto, nesse caso, é cabível porque não há divulgação pública da íntegra do que Freire Gomes disse à Polícia Federal em seu depoimento, mas sim o relato da PF do que ele teria dito. Os típicos “ques”, “que, ao ser questionado, respondeu…”
Mesmo que ele e sua defesa tenham endossado tais registros, o jogo de palavras, a entonação, distorções e os não ditos em uma história como essa podem mudar muita coisa.
A própria PF, por exemplo, tratava Freire Gomes de forma distinta no começo da investigação.
Em novembro de 2023, quando fez a primeira representação sobre o caso ao STF, ela citava indícios de que o general havia resistido à pressão para aderir a um golpe de Estado, mas dizia que era preciso apurar uma possível omissão por ele ter tido conhecimento de uma movimentação ilegal daquele porte e, mesmo assim, ter “quedado inerte”.
Um ano depois, no relatório final da investigação entregue em novembro de 2024, essa sombra de omissão desaparece sem explicação. A narrativa oficial passou a celebrar Freire Gomes como o maior obstáculo à intentona golpista —peça-chave para que Bolsonaro não rompesse com a ordem democrática. Nessa mudança de tom, elementos relevantes ficaram pelo caminho.
Embora outros elementos de prova além da palavra do próprio general indiquem que ele foi sim, um grande entrave à trama, tanto no documento final da PF como na denúncia da PGR são ignorados fatos e indícios em sentido diverso.
O primeiro, a nota pública assinada pelos comandantes das três Forças em 11 de novembro de 2022, tendo Freire Gomes à frente. O documento foi visto à época e inclusive na investigação inicial da PF como uma ameaça velada ao STF e um aval para a manutenção dos acampamentos diante dos quartéis-generais do Exército.
Acampamentos esses que resultaram na tentativa de invasão da sede da PF em Brasília, em 12 de dezembro de 2022, e nos ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.
A própria PF destacava em seu relatório inicial que o chefe da ajudância de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, enviou um áudio de felicitação a Freire Gomes no mesmo dia da divulgação dessa nota, dizendo que ela fora lida pelos acampados como sinal de que teriam a proteção das Forças Armadas contra eventuais decisões judiciais.
Foi de Freire Gomes, também, a ordem para o Exército não desmontar os acampamentos em frente aos quartéis quando o general Gustavo Dutra, chefe do Comando Militar do Planalto, preparou operação de desmonte em 29 de dezembro de 2022. O comandante o chamou de inconsequente e mandou interromper a ação, com receio da reação de Bolsonaro.
Outro episódio que acabou sendo ignorado por PF e PGR ao final foi a participação do chefe do Exército na reunião ministerial de 5 de julho de 2022, ocasião em que Bolsonaro e diversos ministros fizeram manifestações de claro cunho golpista a três meses da eleição.
No fim de 2022, o então comandante do Exército manteve relação ambígua com Bolsonaro. Acompanhou a apuração do segundo turno ao lado do ex-presidente no Palácio da Alvorada e voltou ao local ao menos 13 vezes após a derrota eleitoral —algumas com chefes militares, outras sozinho. Entre outras, em 24 de dezembro, quando entregou um presente e convite a Bolsonaro para a passagem de comando.
Vários dos elementos colhidos nas investigações apontam, porém, para a resistência do chefe do Exército. Entre eles, o depoimento do brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, então comandante da Aeronáutica, segundo quem Freire Gomes ameaçou até prender Bolsonaro caso ele insistisse na aventura golpista.
É fato que o chefe do Exército não confirmou essa ameaça nem à PF, segundo relato de seu depoimento. Agora, como testemunha ao STF, afirmou que apenas informou ao presidente, “de forma bastante cordial, que as medidas que ele quisesse tomar deveriam considerar vários aspectos: o apoio internacional e nacional, o Congresso, a parte jurídica”.
Várias mensagens trocadas por auxiliares do ex-presidente nesse período também apontam para a resistência de Freire Gomes, o que o tornava figura antipática aos golpistas.
A mais famosa delas talvez seja a do general Walter Braga Netto, que, em um diálogo, orientou um dos supostos golpistas a “oferecer a cabeça dele [Freire Gomes] aos leões” na internet.
Freire Gomes como omisso por não agir como deveria quando soube da trama? Estrategista, ao evitar o confronto direto para não ser afastado e se manter como barreira interna? Escudo contra a ruptura, embora hoje modesto sobre seus próprios feitos? O figurino está em aberto.