Os EUA já não podem mais ser classificados como um país institucionalmente estável. Nas democracias, a estabilidade das instituições não é afetada por crises políticas, polarização partidária ou manifestações populares. Tudo isso faz parte do jogo. A instabilidade emerge, porém, quando o Executivo ergue sua lança contra a separação e independência dos Poderes. É precisamente essa a estratégia de Trump.

A tática consiste na fabricação retórica de emergências que propiciariam a utilização de prerrogativas excepcionais. Segundo a Casa Branca, contra todas as evidências, os EUA enfrentam uma emergência econômica, uma invasão estrangeira, ameaças reais à condução da política externa e, finalmente, uma rebelião interna. Dessa paisagem caótica, puramente imaginária, nascem justificativas para a invocação de estatutos legais destinados a enfrentar cenários capazes de colocar em risco a segurança nacional.

Trump deflagrou sua guerra tarifária violando os regimes internacionais da Organização Mundial do Comércio e, nesse passo, por decretos executivos, rasgou o tratado comercial trilateral com Canadá e México aprovado pelo Congresso. Justificativa? A “emergência” expressa nos déficits comerciais estruturais da maior potência econômica do planeta, cujo PIB cresceu sólidos 2,8% em 2024.

Trump estendeu suas deportações a imigrantes com vistos humanitários sob o pretexto insano de “invasão estrangeira”. Seu governo negou audiências judiciais exigidas pela lei ao deportar centenas de venezuelanos sob a acusação não comprovada de pertencerem à gangue Tren de Aragua –e, perante juízes, inventou a lenda de que o grupo criminoso seria dirigido por um governo estrangeiro (no caso, a ditadura de Maduro).

Trump ordenou a prisão e potencial deportação de ativistas estudantis com vistos regulares e até direito de residência que, à sombra da Primeira Emenda, exercitaram a liberdade de expressão. Alegação exorbitante: as palavras deles produziriam danos irreparáveis à condução da política externa dos EUA.

Trump atravessou mais uma fronteira ao convocar forças da Guarda Nacional e dos Marines para, à revelia do governo da Califórnia, operar na moldura dos protestos de Los Angeles. Manipulando imagens, a Casa Branca exibe depredações cometidas por uma minoria de manifestantes como indícios de uma “rebelião” fora de controle contra a agência imigratória. Ameaça explícita: apelar à Lei de Insurreição de 1807 para circundar a proibição de uso de forças militares na repressão interna.

Numa histórica sentença, em 1952, a Corte Suprema dos EUA vetou o decreto de Truman, justificado pela Guerra da Coreia, de nacionalização de siderúrgicas paralisadas por greves. A decisão orientou-se pelo célebre argumento do juiz Robert H. Jackson, que explicou a cautela dos fundadores da nação em conferir poderes emergenciais aos presidentes: “Eles sabiam o que eram emergências, conheciam as pressões que engendram por ações impositivas e sabiam, também, como elas providenciam pretextos fáceis para a usurpação. Nós podemos suspeitar, ainda, que eles suspeitavam que poderes emergenciais tenderiam a semear emergências.”

Trump não enfrenta nenhuma emergência: fabrica emergências para concentrar poderes e, no fim da linha, destruir a democracia americana.


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