“Sempre se fala com mais clareza e calor, com mais razão e proveito, quando se dispõe de baionetas para assegurar o direito que se reclama.”

De autoria do general Pedro Aurélio de Góis Monteiro, um dos militares mais poderosos do país na primeira metade do século 20 —líder do Exército na chamada Revolução de 30 e na Era Vargas, depôs Getúlio em 1945—, a sentença é citada duas vezes em “Utopia Autoritária Brasileira”, do historiador Carlos Fico, recém-lançado pelo selo Crítica, da editora Planeta.

Combina à perfeição com o espírito do livro, cujo subtítulo é tão explícito quanto o sincericídio de Góis Monteiro: “Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje”.

Professor titular de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o autor detalha de forma didática todos os 13 golpes ou tentativas de golpe no país desde aquele que instaurou a República em 1889.

A 14ª, a tentativa de golpe pela qual Jair Bolsonaro é acusado, é citada de forma breve na conclusão da obra, que tem revisão técnica de outro acadêmico referencial na área, o cientista político João Roberto Martins Filho, da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).

A ameaça bolsonarista ainda é muito recente, justifica o autor, que ainda assim arrisca, em entrevista, uma distinção para ela: se no passado a motivação dos militares era mais ideológica/doutrinária, agora o motor principal foi a preservação de vantagens materiais, para manter benefícios (como a previdência especial) e amealhar cargos.

Como explica Fico na apresentação, o propósito do livro “é simples: mostrar que todas as crises políticas brasileiras caracterizadas por ruptura da legalidade constitucional (…) foram causadas por militares”.

“O Exército brasileiro sempre desrespeitou a democracia. As Forças Armadas violaram todas as Constituições da República. Rebeliões contra decisões legítimas; sublevações motivadas por corporativismo; golpes de Estado e tentativas de golpe. Indisciplina e subversão marcam a trajetória dos militares no Brasil”, escreve o historiador.

Apesar do relevante e indevido papel dos fardados como agentes políticos, a sociedade praticamente os desconhece, aponta Fico.

A “utopia autoritária” do título, sintetiza o autor, é “o entendimento militar de que os problemas brasileiros seriam superados e o Brasil se tornaria uma ‘grande potência’” se fossem eliminados obstáculos que impedem essa ascensão. “Os principais obstáculos [no entender dos militares] seriam ‘a subversão comunista’ e a ‘corrupção dos políticos’.”

Em “Utopia Autoritária” o sr. menciona de raspão o governo Bolsonaro. Seria porque, do ponto de vista historiográfico, é muito recente para analisar o que houve nos últimos anos?

É muito recente. A experiência em história mostra que documentos e revelações mais decisivos só vêm com o tempo. Estamos no meio do julgamento do processo golpista do Bolsonaro. E temos basicamente testemunhos, uma ou outra documentação. Eles produziram provas exuberantes contra si próprios, e várias vieram à tona, mas normalmente as revelações mais decisivas demoram.

Os militares são muito ciosos em fazer atas, frequentemente documentam coisas que são até surpreendentes depois. Então não vai ser surpresa se nos próximos anos esse tipo de revelação vier à tona —e aí talvez eu faça um posfácio.

Arriscaria dizer quanto tempo é necessário para termos um quadro mais claro do que houve nos últimos anos?

Acho que em cinco anos a gente já vai ter. Mas provavelmente antes disso a gente já tenha pelo menos uma sinalização mais concreta do que houve, digo, que não seja apenas por meio de testemunhos, mas de documentação escrita mesmo.

Até militares tidos historicamente como democratas, como o marechal Henrique Lott, saem mal no livro. Não há na história brasileira líderes militares legalistas?

Acho que o Rui Barbosa e o general Lott não saem muito bem do livro e que muita gente vai reclamar disso, porque o Lott, por exemplo, é muito estimado em setores da esquerda, que o consideram legalista. O que acontece na maioria dos casos é que alguns poucos generais tomam a frente de iniciativas golpistas. Outros ficam ali em dúvida, observando. Alguns também se posicionam contra, e a maioria fica muda, esperando para ver o que vai acontecer, até porque uma iniciativa golpista é uma coisa muito arriscada.

Isso não significa que não tenha havido e não haja militares profissionais contrários ao golpismo e que defendem a legalidade. Isso sempre houve. O caso do golpe de 64 é bem esclarecedor. Um primeiro ato do chamado Comando Supremo da Revolução cassou mandatos, outro suspendeu direitos políticos de quem não era parlamentar e teve um ato que puniu militares. E essa primeira leva de militares punidos é mais numerosa do que os parlamentares cassados ou civis que tiveram direitos políticos suspensos. Eles foram passados à reserva compulsoriamente. Não dá para dizer que eram militares de esquerda, mas que eram nacionalistas ou que eram legalistas e que se contrapuseram ao golpe de 64. Então sempre há também militares com esse perfil legalista.

O sr. diz que o artigo 142 da Constituição (segundo o qual as Forças Armadas “destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”) é um dos facilitadores desse intervencionismo militar e defende que ele seja alterado. Mas o governo Lula não tem base no Congresso para aprovar uma PEC nesse sentido –que até foi proposta por um deputado do PT. Se tivesse uma base parlamentar mais sólida, acha que o governo Lula alteraria esse artigo?

Espero que sim. É muito difícil saber o que aconteceria, mas acho que sim. O Congresso é muito conservador, tem sido cada vez mais. E conservadores em geral tendem a não estar de acordo com esse tipo de restrição aos militares. Então sou até muito pessimista em relação à possibilidade de mudança de redação do artigo 142, não vejo possibilidade de o atual governo fazer essa alteração, mas acho que seria essencial.

No caso do Lula, mesmo que tivesse base no Congresso, tenho dúvida se ele faria, o histórico dele com os militares permite pensar que não. Por parte dos civis/políticos de modo geral, sempre houve uma resignação, diria até um medo, de confrontar o intervencionismo militar. Por quê?

Inclusive em todos os episódios de golpe ou tentativa de golpe, quando esse assunto chega ao Congresso, se vê exatamente isso que você falou, essa reverência dos parlamentares. Do século passado até episódios mais recentes. Os parlamentares sempre, mesmo os que condenam, acabam fazendo uma deferência, dizendo que, no entanto, foi uma crise muito grave, até se compreende que tenha havido intervenção militar. Então essa reverência sempre houve.

Desde o fim da ditadura, nenhum presidente enfrentou esse problema devidamente, mesmo quando houve condição política para isso. Me parece que há uma questão geracional. Quem tem de 70 anos para cima, aquelas pessoas que enfrentaram mais decisivamente a ditadura, de algum modo desenvolveram essa… para não falar medo, eu usaria a expressão cautela excessiva, muito provavelmente por conta do enfrentamento no passado. É uma especulação.

Talvez porque a baioneta e o canhão inspiram medo… Tem até a frase do Góis Monteiro que o sr. cita duas vezes no livro, de que quando se tem a baioneta, fica mais fácil argumentar…

Exatamente. Isso é uma coisa muito forte. Seria preciso que o presidente da República, seja quem fosse, enquadrasse os militares como funcionários públicos fardados, para os quais a sociedade confere o direito de uso das armas —e, portanto, usar essas armas contra a sociedade é um crime muito grave. Então uma postura mais afirmativa seria de todo desejado, mas, infelizmente, nunca aconteceu desde o fim da ditadura.

Há outro aspecto: é uma contradição o fato de os militares serem agentes políticos tão importantes —indevidamente, não deveriam ser, mas foram e são— e, por outro lado, a sociedade conhecê-los muito pouco. Existe até a caricatura de que os militares não servem para nada, só para pintar meio-fio.

O Congresso Nacional, por exemplo, não tem parlamentares especializados nos militares. Ninguém discute o Plano Nacional de Defesa. De modo geral, há um desconhecimento. Ignora-se inclusive o tipo de valor que motivou um episódio curioso, do general que queria ter uma liderança legalista, fica irritado porque não foi convocado para isso e acaba se mudando para a ala golpista [o general é João de Deus Mena Barreto, um dos líderes militares na deposição de Washington Luís em 1930].

Quer dizer, a motivação desse general foi de natureza muito específica e tem a ver com o sentimento de honra, o sentimento de não poder ser desprestigiado, já que ele estava na posição devida para atuar naquele caso e foi deixado de lado.

Como o teu livro mostra, militares golpistas jamais foram punidos no Brasil. Acredita que desta vez eles serão punidos? E, se forem, o que isso pode mudar nas relações civis-militares?

Acho que isso já deve estar servindo de alerta para as forças militares. Nem tanto assim a relação da sociedade com os militares. Mas, na medida em que é algo inédito, muito provavelmente essas forças estarão entendendo que alguma coisa mudou. Porque, afinal, aqueles generais estavam no banco dos réus respondendo a um interrogatório no Supremo Tribunal Federal, coisa que nunca aconteceu. Então algo mudou.

O sr. escreve no epílogo que esse será o seu último livro. Sendo ainda novo, 66 anos, por que o último livro?

Dou aula há 40 anos… pesquiso esses assuntos há 30 e tantos anos… acho que chega um momento em que a gente tem que sair de cena elegantemente, até para abrir espaço para outras leituras. E também para não se tornar repetitivo.

Espero que não, mas talvez eu faça algum posfácio, se houver uma nova experiência de intervencionismo. Então estou torcendo para que não haja a necessidade de fazer um posfácio.


Raio-X – Carlos Fico, 66

Nascido no Rio, é professor titular de história do Brasil da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), pesquisador do CNPq e um dos principais estudiosos do país sobre a ditadura 1964-1985. É autor de “O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo”, ganhador do Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Biblioteca Nacional em 2008, e “Como Eles Agiam – Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política”, entre outros livros.



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