Era 11 de novembro e apoiadores do então presidente Jair Bolsonaro (PL), descontentes com a derrota eleitoral, acampavam em frente a quartéis pelo país pedindo uma intervenção militar quando os três comandantes das Forças Armadas assinaram nota conjunta em que reafirmavam “seu compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro” e chamavam os atos de “manifestações populares”.
Dois dias antes, o então ministro da Defesa enviara relatório de fiscalização das eleições ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e pedia, “em face da importância do processo eleitoral para a harmonia política e social do Brasil”, que fosse analisado com urgência pedido para criação de comissão de investigação.
Sem identificar nenhuma fraude, a pasta ainda publicou uma nota em que dizia que “não excluiu a possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas”.
Mais tarde se descobriria que, nas semanas que se seguiram, os signatários desses documentos se reuniram com o então presidente para conversas que tiveram como pauta possibilidades jurídicas em face do resultado da eleição.
Dois deles estão no banco dos réus na ação penal sobre a trama golpista no STF (Supremo Tribunal Federal) —o ex-comandante Almir Garnier Santos (Marinha) e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira—, enquanto os ex-chefes Freire Gomes (Exército) e Baptista Júnior (Aeronáutica) foram alçados a testemunhas centrais.
Nenhum deles nega que tais conversas tenham existido. Mas todos, de diferentes modos, minimizam a gravidade delas.
Freire Gomes, por exemplo, apesar de constar na denúncia da PGR (Procuradoria-Geral da República) como um freio ao golpe, chegou a dizer em depoimento que a primeira minuta apresentada por Bolsonaro não “causou espécie”, porque ele teria apresentado “considerandos, todos eles embasados em aspectos jurídicos, dentro da Constituição”.
Nogueira se recusou a falar que Bolsonaro planejava um golpe de Estado e disse que os documentos golpistas eram apenas estudos. Ele relatou ter ficado preocupadíssimo com as sugestões do ex-presidente.
“No mesmo dia alertamos da seriedade, da gravidade se ele estivesse pensando em estado de defesa, estado de sítio […] as consequências de uma ação futura se a evolução realmente das coisas fosse em frente.”
Se no início do governo se fazia uma diferença entre ala militar e ideológica, inclusive no noticiário, o uso dessa classificação desapareceu com o tempo. Assim como a aposta de que os militares, que celebraram a vitória de Bolsonaro e o condecoraram com uma das principais honrarias do Exército no fim de 2018, seriam um freio ao capitão reformado.
Já em 2020, Bolsonaro colecionava discursos em que usava a figura das Forças Armadas para demonstrar força e inclusive proferir ameaças. No contexto da pandemia, se tornaram quase banais as menções do então presidente a figuras como estado de sítio e defesa, assim como “meu Exército” era uma expressão comum de seu vocabulário.
Apesar de a relação dos militares com Bolsonaro também ter sido marcada por atritos, como a demissão, em março de 2021, do então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, acompanhada da renúncia conjunta dos três comandantes, nunca houve uma manifestação clara das Forças repudiando esse tipo de discurso do então presidente.
“Ele queria mostrar para os generais que ele era capitão, mas mandava neles. Aí começou a surgir uma expectativa, já na metade do governo, de até onde os militares vão aguentar”, afirma João Roberto Martins Filho, professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor do livro “Os Militares e A Crise Brasileira”.
Ele avalia que, apesar dessa expectativa, na prática o que aconteceu foi o contrário, com os militares seguindo junto com Bolsonaro até a eleição de 2022.
“E a pergunta que fica é: por que eles não recuaram? Porque, para eles, por incrível que pareça, o governo era deles. Não era o que eles tinham planejado, mas era o que eles sempre falam: ‘o meu lado, o outro lado’. Nenhum exército profissional do mundo tem que ter lado na política. E eles tinham.”
Demitido porque Bolsonaro queria mais apoio, mesmo Azevedo, enquanto estava no posto, protagonizou episódios de forte repercussão negativa, como nota assinada com os comandantes na metade de 2020, seguida de uma representação à PGR, repudiando uma fala do ministro do STF Gilmar Mendes.
Esse mesmo vigor não foi visto, entretanto, nas duas notas pouco taxativas publicadas por Azevedo depois de atos em abril e maio de 2020, dos quais Bolsonaro participou e em que os presentes já pediam intervenção militar. Azevedo chegou a sobrevoar um ato com tal pauta junto ao então presidente em momento que parte do país assistia atônito a tais acontecimentos.
Do começo de 2020 ao fim do governo Bolsonaro, foram publicadas mais de cem notas oficiais no site do Ministério da Defesa, parte delas assinada e muitas rebatendo reportagens. Em dois anos e meio do Governo Lula 3, foram sete.
Era julho de 2021 e Bolsonaro escalava sua retórica contra as urnas quando o sucessor de Azevedo, o general Braga Netto –que viria a ser vice de Bolsonaro e hoje é réu no STF–, assinou uma nota afirmando que “a discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima”.
Duas semanas antes, o alvo tinha sido o presidente da CPI da Covid. Compartilhada por Bolsonaro nas redes, esta era assinada também pelos três oficiais-generais que tinham assumido o comando do Exército, Marinha e Aeronáutica meses antes.
“Quando você tem uma nota assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes, significa que eles estão endossando a posição do ministro e do governo”, diz Adriana Marques, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudiosa das Forças Armadas.
Para ela, houve omissão por parte dos comandantes ao longo do governo. “Essa leniência fez com que as pessoas que já estavam radicalizadas se sentissem à vontade para agir”, afirma a professora, que vê a não punição ao general da ativa Eduardo Pazuello como um marco. “Não tem uma atividade mais política do que um militar da ativa subir no palanque e defender o presidente da República.”
Réu por sua atuação como ministro, foi Nogueira o responsável por arquivar o processo contra o ex-ministro da Saúde quando ainda chefiava o Exército, como defendia Bolsonaro.
Em abril de 2022, já à frente da Defesa, o general publicou uma nota dura contra o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que afirmara que as Forças Armadas estavam sendo orientadas para atacar o processo eleitoral.
Em reunião ministerial de julho de 2022, cuja íntegra veio a público em 2024, Nogueira relatava que vinha realizando reuniões quase semanalmente com os comandantes das Forças analisando o que poderia ser feito para ter “transparência e segurança” no pleito.
“[Para] Que as eleições transcorram da forma como a gente sonha, e o senhor, com que a gente vê no dia a dia, tenhamos o êxito de reelegê-lo. Esse é o desejo de todos nós.”
Relembre episódios e manifestações envolvendo militares ao longo do governo Bolsonaro.
mar.2019 – Celebração do golpe de 1964
Fato inédito desde a criação do Ministério da Defesa, em junho de 1999, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, foi dada orientação pelo então presidente para que os quartéis celebrassem o golpe de 1964 por meio de uma ordem do dia escrita e distribuída pela pasta
abr.2020 – Nota após atos antidemocráticos
Um dia depois de o então presidente ter participado de um ato que defendia uma intervenção militar no Brasil, com discurso marcado por ameaças, e pressionado pelo mundo político e jurídico, o então ministro da Defesa divulgou uma nota em que dizia que as Forças Armadas “trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do País, sempre obedientes à Constituição Federal”, dizia que a pandemia exigia “entendimento e esforço de todos os brasileiros” –não refutava, porém, as pautas golpistas diretamente
mai.2020 – 2ª Nota após atos antidemocráticos
Duas semanas depois, em 4 de maio, após nova manifestação, uma segunda nota foi divulgada. Novamente, o compromisso das Forças com a Constituição era reforçado, assim como repudiavam a agressão a jornalistas. Mais uma vez, no entanto, o texto assinado pelo ministro Fernando Azevedo não traçava uma linha clara ao discurso que pedia intervenção militar. Além disso, dizia que as Forças consideravam “a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do país”, que podia ser lido como recado ao Supremo
mai.2020 – Sobrevoo na Esplanada
Em 31 de maio, o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, acompanhou Bolsonaro em um sobrevoo de helicóptero, que durou cerca de 40 minutos, dando pelo menos seis voltas na Esplanada, enquanto ocorria novamente manifestação de apoiadores do presidente, com bandeiras contra o Supremo e pedidos de intervenção militar
mai.2020 – Nota de Augusto Heleno
O então ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno, divulgou nota afirmando que eventual apreensão do celular de Bolsonaro poderia ter “consequências imprevisíveis”. A declaração, que depois foi endossada pelo então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, ocorreu depois de o ministro do STF Celso de Mello encaminhar pedido da oposição para a PGR avaliar
jul.2020 – Nota contra Gilmar Mendes
Depois de o ministro do STF Gilmar Mendes afirmar, em referência à gestão da pandemia, que o Exército estar “se associando a esse genocídio, não é razoável”, o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e os comandantes das Forças divulgaram nota de repúdio, dizendo ser “uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana” e que “o ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”. A pasta fez ainda uma representação à PGR com base na Lei de Segurança Nacional.
nov 2020 – Fala de comandante do Exército e nota dos comandantes
Um dia depois de o então comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, ter afirmado que os militares não querem “fazer parte da política, muito menos deixar ela entrar nos quartéis”, o ministro da Defesa divulgou uma nota assinada com os três comandantes em que diziam que o chefe da pasta, como parte do governo, era o único “representante político” das Forças e que os “comandantes sempre falam em termos institucionais”. Dizia ainda que o presidente, “como comandante supremo, tem demonstrado, por meio de decisões, declarações e presença junto às tropas, apreço pelas Forças Armadas, ao que tem sido correspondido”
mar.2021 – Renúncia e demissão conjunta
Os então chefes das Forças Armadas decidiram deixar os cargos após o presidente demitir o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, alegando falta de apoio dos militares à sua atuação na pandemia, marcada por desafios às autoridades sanitárias. O general Braga Netto, que viria a ser vice de Bolsonaro e hoje é réu no STF na trama golpista, é nomeado para comandar a pasta
jun.2021 – Não punição de Pazuello por ato político
O então comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, decidiu arquivar o processo aberto para investigar o general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que tinha participado de um ato político com Bolsonaro no Rio de Janeiro. Ele seguiu o argumento do presidente, segundo o qual o ato não teria tido conotação partidária
jul.2021 – Nota contra presidente da CPI da Covid
O então ministro da Defesa, Braga Netto, e os três comandantes da Forças Armadas publicaram nota em que repudiavam uma fala do presidente da CPI da Covid, o senador Omar Aziz (PSD-AM), que criticava o que chamou de “banda podre” das Forças. A nota dizia que a fala atingia as Forças “de forma vil e leviana” e que elas não aceitariam “qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. O Legislativo viu a medida como tentativa de intimidação
jul.2021 – Nota defendendo voto impresso
Em julho de 2021, em meio à escalada das ameaças de Bolsonaro relacionadas à eleição e às urnas, o então ministro da Defesa, general Braga Netto, publicou nota oficial em que rebatia reportagem que dizia que ele teria mandado recado a Arthur Lira e repetia o discurso do presidente. Na nota, Braga Netto afirmou acreditar que “todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes”, além de afirmar que “a discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima”.
ago.2021 – Desfile de blindados na Esplanada
Na mesma data da votação no plenário da Câmara da PEC do voto impresso, a Marinha promoveu um desfile de blindados, caminhões e jipes na praça dos Três Poderes, em ato que foi lido como uma tentativa de demonstração de poder e de politizar as Forças. No início da exibição, Bolsonaro estava em vigília na rampa do Planalto, acompanhado dos então comandantes Paulo Sérgio (Exército), Almir Garnier (Marinha) e Carlos de Almeida Baptista (Aeronáutica), assim como de seu então ministro da Defesa, Braga Netto, e chefes de outras pastas
abr.2022 – Nota contra Barroso
Em abril de 2022, o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, publicou uma dura nota contra o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que afirmara que as Forças Armadas estavam sendo orientadas para atacar o processo eleitoral. À época, o alinhamento dos militares a Bolsonaro ao participarem da comissão no TSE se tornava notório –e o convite da corte aos fardados já era tido como um tiro no pé. Segundo Nogueira, a afirmação “sem a apresentação de qualquer prova ou evidência” era irresponsável e uma “ofensa grave a essas instituições”
nov.2022 – Relatório do ministério da Defesa
Depois de meses de embates com o TSE, e já em meio aos acampamentos bolsonaristas contra o resultado da eleição, em 9 de novembro, o ministério da Defesa publicou seu relatório de fiscalização do processo eleitoral, solicitando à corte, com urgência, a criação de uma comissão para investigação técnica. Sem identificar nenhuma fraude, a pasta ainda publicou no dia seguinte um novo texto em que afirmava que o “relatório das Forças Armadas não excluiu a possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas”. Divulgada inclusive nos perfis oficiais da pasta, a nota e o vaivém serviram para inflamar a narrativa de fraude
nov.2022 – Nota dos comandantes sobre os atos bolsonaristas
Em 11 de novembro, com o título “às instituições e ao povo brasileiro”, foi publicada uma nota assinada pelos comandantes Freire Gomes (Exército), Almir Garnier (Marinha) e Baptista Junior (Aeronáutica). Com recados ao Judiciário, o texto dizia que as Forças Armadas, “sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”, têm “compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro, com a democracia e com a harmonia política”. Na data, foi lida por três vezes no acampamento do QG do Exército