Um dos mais infelizes episódios do calvário do presidente Tancredo Neves –cuja morte completa 40 anos neste 21 de abril–, a farsa em torno dos problemas de saúde que o vitimaram começou a ser desmascarada graças a um furo jornalístico da Folha.

Primeiro presidente civil eleito após 21 anos da ditadura militar (1964-1985) –indiretamente, por um Colégio Eleitoral–, Tancredo foi internado de urgência em 14 de março de 1985, véspera de sua posse. José Sarney assumiu como interino.

Primeiro divulgou-se que Tancredo teve de ser submetido a uma cirurgia de apendicite. Em seguida, a equipe médica informou que se tratava de um caso de diverticulite, e assim foi publicado por toda a imprensa.

Até que, na edição de 21 de março, a Folha relatou que na verdade havia sido extirpado do intestino de Tancredo um leiomioma –um tumor benigno. Ainda assim, médicos e autoridades divulgaram a falsa versão com receio de que a palavra “tumor” fosse alarmar a população no delicado momento político da transição para a democracia.

A informação exclusiva foi obtida pelo publisher –e dono– do jornal, Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), e dava conta também de que Tancredo precisaria de uma nova cirurgia e que seu estado de saúde era grave, o que mudou o curso da cobertura.

“Tinha um batalhão de repórteres da Folha cobrindo [a internação de Tancredo], em São Paulo e em Brasília. E era muito difícil conseguir informação”, recorda Ricardo Kotscho, que integrava essa numerosa equipe.

“A gente ficou sem saber como é que o jornal deu aquilo. Ficava um perguntando pro outro: ‘Foi você que mandou essa matéria?’. Porque nem todas eram assinadas. ‘Não fui eu, eu também não…’ Mas poxa, então quem foi? Depois ficamos sabendo, tinha sido o seu Frias”, narra o repórter, à época já um dos mais gabaritados da imprensa brasileira.

O publisher costumava dizer que não era jornalista, o que Kotscho contesta. “Ele falava: ‘Quem entende de jornal são vocês. Eu sou empresário, meu negócio é ganhar dinheiro’. Mas não era verdade. Ele era jornalista e gostava muito de dar furo, de ter informação na frente dos outros, informação exclusiva e tal. Ele incentivava isso na equipe.”

Como em muitos dos furos que Frias conseguia, o de Tancredo veio de fontes “em off”, ou seja, não identificadas. Há algumas versões sobre de quem o publisher teria obtido a informação exclusiva. Kotscho diz ter ouvido que a fonte foi José Serra, que havia sido editorialista da Folha e mantinha boa relação com Frias.

Na biografia de Frias, escrita pelo jornalista Engel Paschoal, Kotscho afirmara ter ouvido que a fonte do publisher tinha sido Sarney. Mas o biógrafo escreve que “na verdade, foi um médico do InCor (Instituto do Coração, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo)”.

Segundo o jornalista Plínio Fraga, autor da biografia “Tancredo Neves – o Príncipe Civil“, dois colegas próximos da direção da Folha lhe contaram que a fonte de Frias havia sido o senador e governador Antônio Carlos Magalhães (1927-2007).

Fraga pondera, no entanto, que pode ter havido uma outra fonte. “Questionei Otavio Frias Filho (1957-2018), então diretor de Redação da Folha, a esse respeito. Ele não negou nem confirmou, sob a alegação de que devia manter o respeito ao off. Mas sugeriu que a informação foi cruzada com mais de uma fonte.”

Em seu livro, Fraga escreve que, a despeito da veracidade da informação publicada, a farsa foi mantida. “A equipe médica que cuidava de Tancredo persistiu no erro, contestando formalmente que um tumor tivesse sido retirado. ‘É absolutamente falsa essa informação’, irritou-se [o cirurgião] Henrique Walter Pinotti.”

Uma investigação do jornalista Luis Mir, publicada no livro “O Paciente – O Caso Tancredo Neves”, mais tarde adaptado ao cinema, listou uma sucessão de erros de diagnóstico e de procedimentos na condução do caso.

Além da utilização de uma técnica considerada inadequada para operar o leiomioma, que acabaria por provocar um sangramento que agravou o quadro do político, a retirada abrupta da ventilação mecânica foi considerada outro equívoco, pois encharcou o pulmão e levou a um quadro de edema agudo e a uma parada cardiorrespiratória.

Kotscho acabaria sendo enviado pelo jornal a São João del-Rei, cidade natal de Tancredo, para a cobertura do funeral.

Além do furo sobre a saúde do político mineiro, Kotscho lidou diretamente com outras informações exclusivas levantadas por Frias. Como a da nomeação de Luiz Carlos Bresser-Pereira para ministro da Fazenda do governo Sarney, em 1987.

O jornalista conta que o publisher ligou às 6h para a sua casa dando a notícia em primeira mão e pedindo para que ele grudasse no economista e tentasse confirmar a informação. Mas nem o próprio escolhido sabia ainda. “O Bresser estava no [hospital] Sírio-Libanês visitando um parente, eu o encontrei lá. Ele tomou um susto, porque não tinha sido convidado ainda”, lembra Kotscho.

“E aí fizemos um acerto: ele ia à USP participar de uma banca examinadora, eu consegui ir no carro com ele o entrevistando, e combinamos que eu só publicaria se ele fosse mesmo nomeado. Senão eu jogava fora. Naquele tempo não tinha internet. Quando Sarney anunciou [Bresser como ministro], eu já estava com a matéria. Foi uma parceria com o seu Frias. Eu me dava muito bem com ele. Ele faz muita falta, viu?”

Colaborou Naief Haddad



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