Publicado com o objetivo de alertar a população brasileira sobre conteúdos que exploram crianças e adolescentes na internet, o vídeo “Adultização”, do youtuber Felipe Bressanim, conhecido nas redes sociais como Felca, reacendeu outro debate importante relacionado ao mundo digital: a exposição precoce e o vício em telas durante a infância e a adolescência. Uma pesquisa publicada na revista científica internacional Trends in Psychiatry and Psychotherapy mostra que a dependência de smartphones exerce grande influência no agravamento de transtornos mentais, como ansiedade, depressão e estresse, entre outros. No caso de crianças e adolescentes, esse cenário é ainda mais preocupante.

Os primeiros anos de vida e o período entre 10 e 19 anos, segundo profissionais da saúde, são fundamentais para a socialização e o desenvolvimento cognitivo. Nesse contexto, a infância e a adolescência acabam tornando-se suscetíveis ao vício em telas. Nos Estados Unidos, por exemplo, um estudo realizado pela Common Sense Media confirmou que metade dos adolescentes americanos se considera dependente do celular, número que cresce constantemente em escala global.

Segundo Felipe Barata, psicólogo e docente do IDOMED, a diferença entre uma vida saudável e o surgimento de uma patologia está na intensidade e na frequência de um evento ou comportamento a ponto de causar prejuízos à rotina de uma pessoa. “No caso do uso de telas, o vício começa a se evidenciar quando a ideia de ficar sem celular é aterradora, quando almoçar sem assistir a um vídeo se torna intolerável ou quando acordar e não verificar as notificações provoca um vazio”, explica o especialista. “Além disso, o vício se manifesta quando a tela passa a acompanhar o indivíduo como um verdadeiro companheiro. A pessoa conversa, come, interage e assiste a filmes sempre dividindo a atenção entre o evento real e o dispositivo. Muitas vezes, esse uso funciona como refúgio ou escudo contra a socialização. Em resumo, trata-se de um uso sem propósito, com o mero intuito de ocupar o cérebro com algum estímulo.”

Considerando a realidade contemporânea, marcada pelo avanço tecnológico e por uma rotina intensa, a obsessão pelos smartphones torna-se cada vez mais presente nas famílias. A baixa adesão a atividades do cotidiano, a ausência de atenção parental, o tempo pouco preenchido com práticas lúdicas ou pedagógicas e até mesmo a impulsividade podem ser fatores de risco entre meninos e meninas.

Outro agravante para o vício está nas estratégias adotadas em redes e jogos digitais, conhecidas como cliffhangers. Essa técnica, que consiste em ganchos narrativos amplamente utilizados no cinema e na comunicação, cria a necessidade de que o espectador ou usuário se mantenha interessado em uma trama ou jogo, aumentando sua permanência diante da tela.

Ainda segundo o psicólogo Felipe Barata, as consequências do vício são bastante negativas, especialmente entre os mais jovens. “Além das questões físicas, como problemas oftalmológicos e má postura, os efeitos psicológicos aparecem no comprometimento do sono, em sintomas ansiosos, na fragmentação da atenção, na irritabilidade e na distorção da autoimagem a partir da comparação com realidades intangíveis, entre outros aspectos”, ressalta.

Arquivo Pessoal

Para além da tela: conteúdos, regulamentação e a importância do cuidado

No vídeo de Felca, outro ponto de atenção foi a exposição de crianças e adolescentes a assuntos e imagens inapropriadas. Sexualidade precoce, violência, agressões verbais, jogos de azar, coleta abusiva de dados e fake news são alguns dos temas presentes em diversos conteúdos das plataformas digitais, o que representa um perigo quando não há acompanhamento e orientação de um responsável.

“Normalmente são conteúdos inapropriados para a idade, porque eles ainda não dispõem de recursos afetivos, comportamentais e cognitivos para lidar com esses temas e emitir um juízo crítico. Assim, corre-se o risco de expor a criança a situações perigosas e prejudiciais ao seu desenvolvimento. Um exemplo disso foi o jogo Baleia Azul, no qual crianças eram induzidas a práticas perversas a partir de uma falsa ludicidade”, comenta o professor Felipe Barata.

De acordo com Claudine Rodembusch, docente de Direito da Estácio, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não possui artigos específicos que tratem diretamente do ambiente digital, mas seus princípios e diretrizes gerais são aplicáveis à proteção de crianças e adolescentes. “Nesse contexto, pode-se estender a proteção do artigo 227 da Constituição Federal, que reforça a importância da convivência familiar e social, do direito à educação, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e à liberdade, o que também se aplica ao ambiente online”, defende a professora.

Para ela, “é urgente a criação de novas normas jurídicas capazes de atender às demandas sociais decorrentes da rápida disseminação das tecnologias da informação, sobretudo diante da ausência de mecanismos eficazes para conter ou minimizar os danos causados pelo uso excessivo, em especial por crianças e adolescentes. Os fatos sociais evoluem em uma espiral dinâmica, de modo que a lei frequentemente demora a acompanhar os novos usos e abusos resultantes da velocidade e do mau emprego desses processos digitais”, pontua.

No Brasil, o governo federal lançou um guia para o uso saudável de telas na infância e adolescência, que reforça orientações e destaca a relevância da supervisão parental. Além disso, tramita no Congresso o Projeto de Lei nº 2.628/2022, que busca regulamentar o acesso de crianças e adolescentes às redes sociais, a fim de prevenir riscos como conteúdos inadequados e publicidade direcionada a esse público.

“De nada adianta uma nova legislação se pais e responsáveis não educarem esses menores e não se educarem a si mesmos. Não adianta proibir crianças e adolescentes de usar a internet enquanto os próprios adultos dão o exemplo contrário”, enfatiza Claudine.

O psicólogo Felipe Barata reforça que é possível transformar a relação com as telas e a internet em algo positivo e sem conflitos. “No caso da primeira infância, recomenda-se a realização de vistorias contínuas em celulares e computadores. Já em relação a adolescentes, é mais eficaz promover esse acompanhamento por meio de uma conversa franca. A internet é uma ferramenta poderosíssima, capaz de proporcionar aprendizado e acesso à cultura para os pequenos, desde que seja usada com responsabilidade”, conclui.



Source link

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui