O governo que deporta estudantes por manifestações em defesa dos palestinos e bloqueia o acesso de jornalistas que não adotam determinados termos impostos pela Casa Branca vai cassar o visto de autoridades estrangeiras que “censuram” cidadãos e empresas de tecnologia americanas.

Trata-se do mais recente episódio da liberdade de expressão quando convém, o mote do governo Trump.

Essa defesa da liberdade de expressão é, na realidade, uma defesa dos interesses econômicos dos EUA.

Por trás disso tudo, está um objetivo: impedir regulação das big techs.

Em fevereiro, na Cúpula de IA na França, o vice-presidente americano, JD Vance, deixou claro do que se trata. Em março, Brendan Carr, presidente da Comissão Federal de Comunicações dos EUA, afirmou que leis de tecnologia europeias violam a liberdade de expressão.

Segundo Carr, a Lei de Serviços Digitais da UE, que prevê multas para as big tech, é “incompatível com a tradição de liberdade de expressão na América e os compromissos das empresas de tecnologia de manter uma diversidade de opiniões.”

Esse é o mesmo Brendan Carr que ameaçou não aprovar a fusão da emissora de TV americana NBC se ela não respeitasse a determinação do governo Trump de desmantelar os programas de diversidade, equidade e inclusão. E que investiga a emissora CBS pela edição que o programa 69 Minutes fez de uma entrevista da então candidata democrata à Presidência, Kamala Harris.

Em fevereiro, o vice JD Vance passou um recado semelhante na cúpula de IA em Paris. “O governo Trump está incomodado com relatos de que alguns governos estrangeiros estão considerando apertar o cerco sobre empresas de tecnologia americanas. A América não vai aceitar isso.”

E completou: “O governo Trump vai garantir que os sistemas de IA desenvolvidos na América não têm um viés ideológico e nunca restringirão o direito de nossos cidadãos à liberdade de expressão”.

Esse é o mesmo governo americano que revogou vistos de centenas de estudantes estrangeiros nos EUA por estarem envolvidos em atividades que supostamente vão contra os interesses americanos.

Muitos deles simplesmente manifestaram apoio a palestinos de Gaza em declarações consideradas “antissemitas” pelo governo Trump.

A Universidade Harvard teve bilhões em recursos governamentais cortados por se recusar a adequar seu currículo aos ditames do governo Trump e a passar informações detalhadas sobre seus alunos estrangeiros.

Também foi esse governo “contra censura” que impediu a entrada de repórteres da Associated Press em eventos na Casa Branca, porque a agência não quis adotar a nova nomenclatura do governo Trump para o Golfo do México —que passou a se chamar Golfo da América por decreto. Importante lembrar que a AP tem clientes no mundo todo, onde não vale essa nova língua imposta por Trump.

Já vimos que há um amálgama entre os interesses das empresas de tecnologia e o governo Trump e os limites entre setor público e setor privado estão cada vez mais tênues. Um bom exemplo foi a atuação do Departamento de Estado no caso Rumble versus Alexandre de Moraes.

A empresa de mídia de Trump e o Rumble entraram com ação conjunta em um tribunal federal americano contra o ministro do STF. As empresas afirmam que ordens de Moraes determinando que o Rumble fechasse a conta do influenciador bolsonarista Allan dos Santos e fornecesse seus dados de usuário violam a soberania dos Estados Unidos, a Constituição americana e as leis do país.

Dias depois, o governo americano encampou a briga. Na conta oficial de uma divisão do Departamento de Estado, o governo afirmou que “o respeito pela soberania é uma via de mão dupla com todos os parceiros dos EUA, incluindo o Brasil”.

E disse: “Bloquear o acesso à informação e impor multas a empresas baseadas nos EUA por se recusarem a censurar pessoas que vivem nos Estados Unidos é incompatível com valores democráticos, incluindo a liberdade de expressão”.

Com o aviso desta quarta-feira (28) do secretário Marco Rubio sobre revogação de vistos de autoridades estrangeiras que praticam a censura, os EUA preparam o terreno para dizer que o governo brasileiro restringe a liberdade de expressão e retaliar com tarifas ou outros instrumentos as tentativas de impor regulação às big techs.

Vão unir o útil ao agradável: protegem suas empresas e usam de forma hipócrita a nobre defesa da liberdade de expressão, quando convém.



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