Recentemente, Gil do Vigor criticou o aumento do IOF (Imposto sobre Importações Financeiras). A crítica era técnica, sem hostilidade nem rompimento político. Mesmo assim, apanhou dos dois lados. Para a direita, era contradição: como alguém simpático ao governo ousa criticá-lo? Para a esquerda, virou traidor, economista da Faria Lima. O conteúdo pouco importava. A única pergunta era se ele ainda estava do lado certo.
Esse tipo de reação ajuda a entender o que se espera hoje do comportamento político. A coerência virou prova de lealdade. Um critério de vigilância. O que está em jogo não é o mérito da ideia, mas o alinhamento ao grupo.
Jonathan Haidt parte da observação de que pessoas com orientações políticas distintas organizam suas opiniões com base em intuições morais diferentes. Ele identifica cinco fundamentos morais recorrentes e aplica questionários em milhares de participantes para medir a força de cada um.
A conclusão é que progressistas tendem a priorizar cuidado e justiça, enquanto conservadores também ativam lealdade, autoridade e pureza. Isso ajuda a explicar por que posições que parecem contraditórias à luz da lógica são vividas como coerentes dentro de certos grupos. O que segura o pacote não é a conexão entre as ideias, mas o valor que elas acionam.
Já Geoffrey Layman e Thomas Carsey analisam a consolidação de pacotes ideológicos fechados ao longo das últimas décadas. Em um estudo baseado em dados legislativos e surveys, eles identificam um processo chamado de extensão do conflito, em que partidos passaram a associar temas variados em um mesmo bloco de alinhamento.
Assuntos como aborto, meio ambiente, política externa e segurança pública, que poderiam ser debatidos separadamente, passaram a operar como marcas ideológicas. O eleitor não adere a cada uma dessas posições após longa reflexão. Ele adere ao pacote, porque foi esse o formato oferecido pelas elites.
Essa lógica se repete em diferentes temas. Como é possível defender os direitos LGBTQIA+ e, ao mesmo tempo, expressar solidariedade ao povo palestino? Do outro lado, como alguém que se diz cristão pode apoiar as deportações em massa feitas por Trump? A coerência é cobrada não para promover entendimento, mas para descredibilizar o adversário. “Olha só como fulano é hipócrita!”.
Contudo, sair dessa armadilha é possível se houver disposição. Em um episódio recente do Conversa com Bial, duas lideranças evangélicas aceitaram falar sobre os excessos do próprio campo. Gutierres Siqueira, conservador, criticou o culto à violência e à retórica agressiva da direita. Já Aava Santiago, vereadora feminista, apontou a arrogância moral e a dificuldade de reconhecer legitimidade no outro. Nenhum dos dois tentou parecer impecável. Estavam abertos ao diálogo.
Reconhecer as falhas do nosso grupo é parte da tarefa. Mas não basta. O debate público não melhora na denúncia da hipocrisia alheia. É preciso continuar tentando avançar no mérito. Convencer com dados, com apelo à realidade, com sensibilidade para os valores do outro. Se eu defendo a abertura comercial, por exemplo, não ganho nada acusando o interlocutor de incoerência ideológica.
O que pode funcionar é mostrar como isso afeta sua vida, sua renda, sua comunidade. Conectar o argumento com algo que faça sentido na identidade dele. Porque, no fim, a conversa só tem chance quando política volta a ser disputa de ideias capazes de melhorar a vida das pessoas.
Fiscalizar o outro é fácil. Difícil é construir um argumento que fale com quem pensa diferente. Mas vale a pena, mesmo que ninguém aplauda.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.