Uma série de falhas do Poder Judiciário, iniciadas no Paraná em 2017, dão pistas para explicar a abordagem da Polícia Militar de São Paulo ao jornalista Leonardo Sakamoto, colunista do UOL, confundido no último fim de semana com uma mulher de 27 anos acusada de homicídio.
Sakamoto, 48, foi parado duas vezes por PMs que lhe apontaram fuzis enquanto dirigia de sua casa para o UOL. O mandado de prisão contra uma paranaense trazia o CPF do jornalista e, ao checarem a placa de seu carro, o sistema atribuiu o veículo à foragida.
O secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, telefonou para Sakamoto para verificar a situação. Ainda no domingo (8), o erro já havia sido corrigido nos sistemas da PM paulista.
Uma das preocupações, segundo Derrite relatou a Sakamoto, é que o protocolo da corporação para foragidos por homicídio prevê tratar o suspeito como pessoa de alta periculosidade —o que teria justificado as armas apontadas para ele.
Os erros relacionados ao caso começaram há mais de sete anos.
Em 16 de outubro de 2017, na delegacia de Nova Esperança (a 481 km de Curitiba), a dona de casa Mariana Rosa Soares, então com 19 anos, prestou depoimento em um processo de receptação. Era acusada de vender, num grupo do Facebook, uma chapinha e um secador de cabelo roubados dias antes.
No auto de interrogatório, consta que ela não apresentou documento de identidade, mas ali aparecem dois números: o de seu RG e o do CPF de Sakamoto.
O TJ (Tribunal de Justiça) do Paraná afirmou, em nota, que o CPF “foi informado pela ré”.
Contudo, anexada ao mesmo auto, há uma cópia de consulta no Sistema de Investigações Policiais do Paraná em que já figuravam tanto os dados de Mariana quanto os do jornalista. Ainda não se explicou por que o erro não foi sanado logo ali.
A advogada Beatriz Gisele de Almeida Urgnani, nomeada dativa (defensora contratada pelo Estado na ausência de defensor público), disse não se recordar do caso.
Em todo o processo, o CPF registrado para Mariana é o de Sakamoto. Ela acabou condenada, em setembro de 2020, a um ano de prisão em regime aberto e multa de R$ 1.045 (R$ 1.423, em valores corrigidos).
Menos de um mês depois da sentença, a Vara de Nova Esperança detectou o erro e o corrigiu, segundo certidão fornecida à Folha pelo tribunal —inserindo no processo o CPF correto da ré. Mesmo assim, em despachos posteriores, o CPF de Sakamoto voltou a aparecer, sem explicação.
Enquanto a primeira ação seguia, Mariana se envolveu em crime mais grave, segundo acusou o Ministério Público do Paraná.
Na noite de 16 de março de 2019, em briga por dívida de R$ 10 referente a um cigarro de maconha, ela participou, com quatro adultos e dois adolescentes, do linchamento de um homem no bairro Jardim Novo Horizonte. A vítima morreu horas depois no hospital.
Nesse processo, os dados de Mariana estavam corretos. Ela foi condenada, em um caso que correu sob segredo de Justiça, e, como ela estava foragida, seus dados foram parar no BNMP (Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões).
No banco nacional, entretanto, o CPF inserido voltou a ser o de Sakamoto — informação que alimentou o sistema consultado pela PM paulista e que resultou nas abordagens no último final de semana.
A Folha ouviu a técnica judiciária que, em 2020, assinou a certidão de correção no caso de receptação. Ela disse que também não se lembra do episódio, mas suspeita que o erro tenha sido notado após a expedição de algum ofício e que a atualização não foi replicada em todos os sistemas.
A técnica cogitou que Mariana tenha sido cadastrada no BNMP com os dados incorretos naquela ocasião, perpetuando o equívoco no segundo processo.
Advogados que auxiliam Sakamoto levantam questionamentos sobre o fato de a ré ter informado aleatoriamente um CPF que, por coincidência, corresponde ao do jornalista, ou mesmo ter dado o documento ciente de que se tratava dele.
Sakamoto é conhecido pela defesa dos direitos humanos. Na época em que a troca de dados ocorreu, ele fazia críticas públicas à Lava Jato, operação sediada no Paraná. “Isso mostra a fragilidade dos sistemas, que pode alcançar outras pessoas”, disse à Folha.
Além de afirmar que foi Mariana quem forneceu o CPF errado e que o dado fora corrigido, o TJ-PR declarou que “está apurando os motivos pelos quais o BNMP recebeu a informação incorreta e tomará todas as medidas necessárias”.
“O BNMP é de responsabilidade do CNJ. O sistema é alimentado pelos tribunais; no caso Sakamoto, o preenchimento foi feito pela Vara Criminal de Nova Esperança”, informou o conselho.
“O CNJ efetuou a imediata correção dos dados assim que tomou conhecimento do fato e reforça a necessidade de atenção dos tribunais ao preencher informações, sob pena de investigação pela Corregedoria Nacional de Justiça”, acrescentou.
Mariana continua foragida. A reportagem tentou, sem sucesso, localizar familiares para ouvi-la.