Quando o caso do mensalão chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal), as notícias indicavam que se tratava de um julgamento inédito da alta casta política e econômica do país. Alguns analistas indicavam que era o próprio sistema político –os vícios e virtudes do presidencialismo de coalizão– que estaria sob escrutínio. Mas poucos analistas chegaram a avançar a tese de que o próprio STF estaria também no banco dos réus, como de fato ocorreu.
Só o julgamento de mérito, iniciado em agosto de 2012, ocupou o tribunal por quatro meses. Foram diversas capas de revista, entrevistas em rádio, análises em jornais e mesmo transmissão ao vivo das sessões de julgamento, para dar conta de todo o enredo político e jurídico do julgamento, no qual os ministros surgiram como estrelas, para o bem e para o mal.
O Supremo perdeu a cerimônia consigo próprio. Foram muitos desentendimentos televisionados que romperam com a liturgia: discussões acaloradas, com acusações recíprocas de chicana e de favorecimento ou acusação com fins políticos.
Tivemos traições e intrigas: candidatos a ministros que prometeram “matar o processo no peito” ao encampar teses de defesa, mas que assumiram protagonismo ferrenho ao endossar teses da acusação.
Tivemos ministros que prolongaram e encerraram sessão para impedir um colega de votar, para que o debate público pudesse pressioná-lo a mudar de ideia durante o final de semana.
Toda essa dramaturgia judicial, narrada e analisada aos detalhes, aproximou a população do Supremo de forma apaixonada, no elogio e na crítica.
Um movimento que só se acentuou com a ascensão e queda da Lava Jato, o impeachment da presidente Dilma, as denúncias de corrupção no governo Temer, o embate com o governo Bolsonaro, envolvendo a pandemia, a descredibilização do processo eleitoral, investigação da tentativa de golpe de Estado, chegando à punição de golpistas envolvidos no 8 de janeiro de 2023.
Essa ampla exposição e visibilidade gerou um custo político ao Supremo, cuja reputação se tornou a soma da reputação individual de seus ministros.
Os ministros, por sua vez, passaram a ser vistos cada vez mais como agentes políticos pela população. Seus votos e decisões passaram a ser encarados como atos politicamente orientados e, portanto, avaliados mais pelo resultado de suas ações do que pelas razões jurídicas por trás delas.
Assim, toda vez que o tribunal não atende a determinadas expectativas políticas, passa a ser acusado de parcial, ativista etc. Dada a relevância e a natureza polêmica dos casos que tem julgado, sempre haverá uma porção relevante da sociedade fazendo essa acusação.
Essa acusação se torna mais frequente e contundente quando o Supremo impõe controles ou responsabiliza certos agentes ou grupos políticos. Quando essas acusações persistem no tempo e se disseminam por diferentes grupos sociais, a crítica pontual se transforma em desconfiança e rejeição da legitimidade da corte constitucional.
Esse caldo de insatisfação popular de desconfiança e rejeição viabiliza que a crítica e o ataque ao Supremo se tornem potente pauta eleitoral. Isso atende perfeitamente aos interesses de uma classe política disposta a rifar o interesse público em prol do benefício de certos grupos de interesse.
Assim se fala em reformar o Supremo sem o objetivo de aperfeiçoar a instituição e lidar com os problemas de longa data que afetam o tribunal. Os projetos de lei, as propostas de CPI, os pedidos de impeachment são mobilizados para atacar o STF por aquilo o que ele faz de correto.
São ameaças para que normas inconstitucionais não sejam derrubadas, direitos não sejam reconhecidos, práticas abusivas não sejam contidas e crimes realizados por agentes políticos não sejam punidos.
Voltando ao mensalão, é evidente que o caso em si não pode ser culpado pelas mazelas que afetam atualmente o STF. O julgamento gerou uma exposição sem precedentes do tribunal, que lhe conferiu, de início, ampla popularidade e prestígio. Com o tempo, os vícios na atuação do tribunal também passaram a ser amplamente conhecidos.
Diante disso, os ministros poderiam ter agido com reformas internas para mitigar seus persistentes problemas, como excesso de decisões individuais, instabilidade na jurisprudência, pouco controle sobre impedimento e suspeição de ministros.
No entanto pouco foi feito nesse sentido, deixando o STF vulnerável a uma classe política que se apropria cada vez mais do Orçamento público e tem o maior interesse em desmontar a principal instituição capaz de lhe controlar.
No final, o mesmo exercício de poderes penais que rendeu ao STF tanto prestígio anos atrás hoje lhe coloca na berlinda.
Não há volta para a exposição que o mensalão proporcionou ao STF, mas ainda há tempo para o tribunal corrigir seus problemas para tentar evitar uma investida legislativa com ares de legitimidade.