“Fui ao ministro Zé Dirceu, ainda no início de 2004, e contei: ‘Está havendo essa história de mensalão. Alguns deputados do PTB estão me cobrando. E eu não vou pegar.'”

As declarações do então deputado Roberto Jefferson em entrevista à Folha, em junho de 2005, foram o ponto de partida de um dos maiores escândalos políticos do país, que abalou o primeiro governo de Lula, impactou o Judiciário e agora completa 20 anos.

O mensalão foi um esquema ilegal de financiamento político voltado a corromper parlamentares e garantir apoio ao PT no primeiro mandato do então presidente (2003-2006).

Lula não foi formalmente acusado no caso, mas sofreu grande desgaste político a ponto de pôr em dúvida suas condições de obter a reeleição em 2006. Perdeu aliados de primeira hora, como Dirceu, e teve que remodular seu governo. Ele acabou vencendo a disputa presidencial com 61% dos votos no segundo turno, ante 39% de Geraldo Alckmin, então no PSDB.

O caso foi a julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) em 2012 e foi concluído com 24 réus condenados.

Relembre as acusações e os principais desdobramentos políticos:

A entrevista

Acuado com acusações sobre os Correios que envolviam pessoas ligadas a seu partido, o deputado federal Roberto Jefferson, então presidente do PTB, uma das siglas aliadas do governo Lula na época, concedeu entrevista à Folha, publicada em 6 de junho de 2005.

“Roberto Jefferson cumpriu a promessa de que falaria. E falou muito. Em entrevista exclusiva à Folha, o presidente do PTB disse que na base das dificuldades que o governo enfrenta no Congresso estão problemas com o chamado mensalão, uma mesada de R$ 30 mil que seria distribuída a congressistas aliados pelo tesoureiro do PT, Delúbio Soares”, dizia o início da reportagem assinada pela jornalista Renata Lo Prete.

Entre outros pontos, Jefferson disse que deputados do PL e PP, então aliados do governo, recebiam o suborno e que rejeitou oferta para integrar o esquema.

Afirmou que alertou ministros, como José Dirceu (Casa Civil) e Antonio Palocci (Fazenda), além do próprio Lula. “É mais barato pagar o exército mercenário do que dividir o poder. É mais fácil alugar um deputado do que discutir um projeto de governo.”

CPIs, depoimentos e investigações

As declarações provocaram forte repercussão política em Brasília. Uma CPI sobre os Correios virou palco de depoimentos quase diários sobre o caso.

Um dos nomes que surgiram após a entrevista de Jefferson foi o do empresário Marcos Valério, que era dono de agências de publicidade em Minas Gerais e foi apontado pelo deputado do PTB como operador do esquema.

Posteriormente, uma ex-secretária dele, Fernanda Karina, depôs acusando Valério de fazer pagamentos em dinheiro para deputados.

Investigações e reportagens aprofundaram os detalhes, mostrando pessoas ligadas a parlamentares em idas a uma agência do Banco Rural para sacar dinheiro.

Demissão de Dirceu

Um momento-chave do caso ocorreu duas semanas após a entrevista, com a demissão do homem forte do governo, José Dirceu. Braço direito de Lula desde a vitoriosa campanha de 2002, ele deixou o posto pressionado pelas acusações de Jefferson.

“Tenho as mãos limpas”, afirmou, em discurso.

A saída de seu principal auxiliar reconfigurou o governo. O ex-chefe da Casa Civil era visto como principal conselheiro do presidente e inclusive cotado para ser seu sucessor. Para seu lugar, foi nomeada a até então pouco conhecida ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff.

Semanas depois, caiu também o então presidente do PT, José Genoino. Ele saiu do posto em meio à revelação de que Valério tinha sido avalista de empréstimos ao partido.

Pouco antes, Delúbio se afastou da direção da legenda. Em CPI, ele atribuiu o fluxo financeiro a caixa dois eleitoral.

Dirceu acabou cassado na Câmara dos Deputados, assim como Jefferson, ainda em 2005.

Pressão sobre Lula

O auge da crise ocorreu em agosto de 2005. Responsável pela campanha presidencial petista de 2002, o marqueteiro Duda Mendonça se dispôs a falar em CPI após sua sócia ser convocada.

Disse que tinha recebido pagamento em caixa dois no exterior e também por meio de Marcos Valério.

Veteranos do PT, como os deputados Chico Alencar e Ivan Valente, deixaram o partido logo depois.

A oposição começou a falar na possibilidade de impeachment de Lula, e o presidente decidiu fazer um pronunciamento sobre o caso.

“Eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento”, disse Lula na ocasião.

O petista articulou uma reação política. Ampliou seus acordos políticos, fortalecendo a base aliada no Congresso. A pressão foi gradualmente diminuindo e ele se recuperou nas pesquisas para 2006.

O tema, porém, virou quase um tabu. Lula sempre evitou se aprofundar no assunto em entrevistas e nunca nomeou por quem teria sido traído.

Anos depois, mudou o tom e chegou a classificar a crise política vivida como uma “tentativa de golpe”.

A denúncia do procurador-geral

O então procurador-geral Antonio Fernando Souza apresentou denúncia (acusação formal) sobre o caso em março de 2006.

A peça atribuía papel de comando a José Dirceu e citava que o esquema de Marcos Valério já tinha sido usado a favor do PSDB em Minas Gerais em 1998.

A acusação afirmava que políticos ligados ao PL, PP e PTB —aliados ao PT— receberam dinheiro em troca de apoio ao governo Lula.

Ainda de acordo com a denúncia, o Banco Rural alimentou o esquema emprestando recursos para o PT e para agências de Marcos Valério. Outra fonte foi dinheiro desviado do Banco do Brasil.

Entre os denunciados, estavam Delúbio, Duda Mendonça e parlamentares, como João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Bispo Rodrigues (PL-RJ).

Segundo o procurador-geral, o esquema estava dividido nos núcleos político (capitaneado por Dirceu), operacional (de Marcos Valério) e financeiro (composto por dirigentes do Banco Rural).

Os dirigentes do Rural foram acusados de dar suporte ao esquema, permitindo que os políticos sacassem dinheiro sem se identificar e transferindo parte dos recursos para o exterior.

Julgamento e controvérsias

A denúncia foi aceita em 2007 no STF, e o julgamento de fato só começou em 2012. Foram 53 sessões plenárias ao longo de quatro meses até o resultado final, com televisionamento pela TV Justiça e outras redes.

O caso marcou época no Supremo, por seu ineditismo e repercussão. O relator Joaquim Barbosa, com votos duros, passou a ser exaltado por opositores do PT e pelo eleitorado à direita.

Os longos meses de julgamento foram cercados de polêmicas jurídicas. A começar pela relação conflituosa entre o relator e o revisor do caso, Ricardo Lewandowski, que votou por penas mais brandas ou absolvições.

Logo no início, Barbosa acusou o colega de “deslealdade” por concordar com o pedido de uma defesa.

No julgamento de recursos, em 2013, o relator disse que o colega fazia “chicana”. “Peço que Vossa Excelência se retrate imediatamente”, disse Lewandowski.

Outra controvérsia foi a participação no julgamento de Dias Toffoli, que tinha sido advogado do PT e subordinado de Dirceu na Casa Civil federal.

No momento da definição das condenações, também houve muitos questionamentos com a chamada teoria do domínio do fato, usada no meio jurídico para punir o líder de uma organização pelo conhecimento de crimes.

A teoria foi utilizada para condenar Dirceu. O ex-ministro sempre disse ter sido punido sem que houvesse provas e ainda acusou o ministro Luiz Fux de tê-lo “assediado moralmente”, antes de ingressar na corte, em busca da nomeação para o tribunal.

As defesas questionaram ainda o fato de o julgamento ocorrer na Suprema Corte, já que quase todos os réus não tinham mais foro especial.

Desfecho

Dos 40 denunciados, 24 tiveram a condenação confirmada. Recursos foram apresentados, e o cumprimento das penas só começou um ano depois do julgamento de 2012.

Joaquim Barbosa mandou prender condenados no feriado de Proclamação da República de 2013. Dirceu e Genoino se entregaram na sede da PF em São Paulo fazendo um gesto de punho cerrado.

Um dos réus, o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, fugiu para a Itália, mas acabou extraditado após dois anos.

Em 2016, parte dos condenados, como Dirceu e Jefferson, foi beneficiada com indulto de Natal que tinha sido concedido pela então presidente Dilma.

Valdemar e Jefferson voltaram, respectivamente, ao comando do PL e do PTB posteriormente, tornando-se aliados do governo Jair Bolsonaro.

O ex-líder do PTB hoje está em prisão domiciliar e responde a processo por ter atirado em policiais federais em 2022.

A partir de 2014, elos do escândalo do mensalão foram abordados nas investigações e delações da Operação Lava Jato. Logo na primeira fase deflagrada, foi preso o condenado Enivaldo Quadrado, ex-sócio de uma corretora envolvida no mensalão.

O ex-deputado do PP-PR José Janene, que morreu em 2010, tinha sido denunciado no mensalão e era o político mais próximo do doleiro Alberto Youssef, pivô da Lava Jato e um de seus primeiros delatores.

O ex-deputado pelo PP-PE Pedro Corrêa foi outro preso e condenado tanto na operação deflagrada em Curitiba quanto no caso revelado em 2005. Ele disse em delação, em 2016, que considerava o mensalão e o petrolão como um esquema só, já que os dois tratavam de compra de parlamentares por apoio ao governo.



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